PUCHEU , Alberto. Giorgio Agamben: Poesia, filosofia, crítica . Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010. 168, p.

José Henrique de Paula Borralho

Jh_depaula@yahoo.com.br

 

Ao se debruçar sobre o conjunto da obra de um dos maiores críticos literários da atualidade, o italiano Giorgio Agamben, Alberto Pucheu Neto nessa monumental obra esclarece e perscruta as sendas do processo de criação artística entre a relação que envolve a poética e sua imbricada conjunção com a filosofia, sem olvidar de como a crítica no mundo ocidental construiu seu arcabouço a partir da linguagem, do texto como elemento de explicação semântico e sintagmático do mundo, à medida que a razão instrumental ora recorria à poesia, ora se distanciava dela, enquanto mecanismo compungindo de expiação do sentimento de descoberta do cosmos.

Essa é uma das razões pelas quais o pensamento filosófico ou teórico do século XIX caracterizou-se pela invenção de uma escrita poético-teórica, ou seja, o processo de designação de uma linguagem responsável até pela própria criação dos sentidos, dando conta de uma explicação causal das coisas. Giorgio Agamben denúncia a separação ocidental entre filosofia e poesia. O que no principio nasceu imbricada com os gregos, aos poucos se deslindava para uma ruptura da qual a poesia cada vez mais ficava resguardada não como mecanismo de elucidação do não revelado, mas como manifestação isolada de seus criadores, os poetas, como se suas conjunções expostas sob forma poética não contivesse em si um processo de exposição, até mesmo da linguagem. Para tanto, a crítica pode ser poesia e a poesia crítica, segundo Pucheu, porque a suposta dicotomização entre ambas dificulta a compreensão de como a crítica nasce a partir da poesia, instrumentalizando sua interpretação, assim como a crítica ao desvendar as filigranas da poesia, é em sua essência, também poesia, estabelecendo intermediação, paralelismo, imbricação.

Para Alberto Pucheu, Giorgio Agambem aposta numa reconciliação de uma “teoria nela mesma literária”, a fim de encontrar a unidade da palavra despedaçada. A aposta reside em (PUCHEU, 2010, p. 20):

Lidar com a filosofia, a literatura, e seus entornos interventivos a partir da busca incansável por uma nova modalidade de escrita, que reconcilie o cindido ocidental em um novo destino, é o projeto perseguido por Giorgio Agamben desde a primeira página de abertura de seu primeiro livro, quando assume a herança nietzschiniana de uma anunciada reversão de Kant.

A estética tornou-se um elemento da própria configuração instrumental da reflexão degastada da própria arte. Propôs-se a ser maior que o ato da criação, de desapego às forças internas da criação para medir a transmissão e valor da obra. Ora, a obra não se resume ao seu resultado impresso, aquilo que a crítica e a estética tentam dar conta, já que cada vez que se “retira um livro da estante para ler, outro livro, desse mesmo livro, permanece lá, para sempre invisível, para sempre invisível”, na asserção do escritor egípcio Edmond Jabés, segundo Pucheu (2010, p. 56), afinal, toda obra escrita é apenas um prelúdio de uma obra ausente.

Outro problema colocado pela teoria literária do século XIX é a difícil desvinculação entre poesia e prosa — uma análise acurada da obra de Euclides da Cunha da conta disso, afinal, as estruturas poéticas comportam diferenças de uma prosa que se proveu de elementos poéticos ao longo da história como estância criadora de sua narração, posto que a prosa contem em si elementos de sonoridade.

A sonoridade existente no processo de hibridização da prosa está contida em estancias como a Versura do enjambement , ou como diria o próprio autor (PUCHEU, 2010, p. 76):

A versura é o momento exato em que ela própria, enquanto disjunção, dá passagem e nascimento à articulação necessária dos versos. Assim, a versura do enjambement, fazendo a palavra retornar à sua origem criadora, manifesta a ideia do verso e, não menos, a ideia de linguagem: confudindo-se com ela, o poema, como um de seus lugares privilegiados, se fende em duas movimentações vazadas, a mostrar as duas forças intrínsecas a ele e a ela.

 

Ao evidenciar a diferenças entre poesia e história e poesia e cinema o autor não ser propõe a evidenciar a importância desta primeira em detrimento de qualquer outra forma de linguagem, expressão ou explicação do mundo, ao contrário, os mecanismos de legibilidade de linguagens como a histórica e a cinemática ao se colocarem por vezes como não poesia é que perdem sua força inextrincável não de explicação, mas de expiação dos sentidos, ou seja, aquilo que não pode explicado, nem tudo pode ser explicado, deve ser intuído pelos sentidos, sorvido, consumido, compungido. Desta feita, Pucheu recorre a alusão feita pelo cineasta Abbas Kiarostami, que afastando cinema de literatura e aproximando-a da poesia se nega a aceitar um cinema que conte tudo, que explique didaticamente o sentido das coisas, que conte histórias. Para Abbas, a incompreensão faz parte da essência da poesia. O cinema deveria fazer a mesma coisa.

E quanto à história? Essa, por seu turno, no afã e desiderato de “explicar” tudo, ao ter se abastado da poesia e da literatura no século XIX perdeu a sua força criadora, sua capacidade de imbricar-se nos mecanismos da existência humana pela dinamicidade da vida, por aquilo que, ainda que não realizado no plano do real vivido, nem por isso deixou de existir, tal como o livro que tirado da prateleira continuou a existir como preambulo de outro livro ainda não escrito. A história também se faz daquilo que se sentiu, daquele que se desejou, mesmo não efetivado no plano das relações objetivas.

Por essa razão é que Pucheu no seu último e quarto ensaio mostra as intrínsecas relações entre poesia e filosofia, mostrando como poetar e filosofar está carregada de sentidos e de uma captura da ou das existências. Para o autor, segundo o italiano, Giorgio Agamben, “na busca de acesso a uma autêntica compreensão do problema da significação, o que está em jogo é a reflexão ocidental sobre o significar ou a linguagem. Entender esta questão é entender a necessidade de filosofar” (PUCHEU, 2010, p. 119).

Não à-toa o autor culmina sua obra citando Hegel na sua explanação sobre o enigma na arte egípcia, os diferentes níveis do simbolismo na arte, a superação das artes por outras artes, e o esforço de Édipo em decifrar o enigma da esfinge, ou seja, libertar a Grécia do que “ainda possuía de egípcio”, ou, “a vitória do humano sobre a naturalidade da animalidade presente na figura da Esfinge”, pletora vontade potente do herói civilizador moderno.

Giorgio Agamben e Alberto Pucheu Neto são interseccionais. O pensamento dos dois se funde nessa obra reveladora de como a trajetória de um pensamento instrumental ocidental pode levar a existência humana a um aprisionamento de um tipo de linguagem. Ser interseccional é romper com a atomização dos sentidos, com o encaixotar das formas de expressão, é perceber o mundo através das suas múltiplas formas sem encerrá-las em seus sentidos estanques, é enxergar o que filosofia existe na poesia e o que de poesia contem de substancia filosófica, é retornar para casa, para quando homens e mulheres se preocupavam em existir desvelando os mistérios, e não meramente afirmar que até os mistérios são criações da linguagem, como se antes da linguagem existisse o nada.

A poesia e a filosofia não são turistas, são viajantes. O turista quer chegar ao seu destino de qualquer forma, ele quer chegar. O viajante está preocupado com o caminhar, com o processo. Ele se descobre no percurso.

 

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