APOSTA NA CRÍTICA POÉTICA
Alberto Pucheu quer desguarnecer fronteiras entre a teoria e a criação

Resenha escrita por Alcir Pécora, para o Caderno Prosa & Verso, de O Globo de 8 de dezembro de 2007

Li os dois livros de Alberto Pucheu, poeta e professor de teoria literária da UFRJ, recém- saídos pela Azougue Editorial: “Pelo colorido, para além do cinzento (a literatura e seus entornos interventivos)”, que reúne ensaios publicados entre 2002 e 2006, e “A fronteira desguarnecida”, que reúne sua vária poesia editada, desde 1993, além de inéditos e entrevistas com o autor. O núcleo do livro de ensaios é a crítica da crítica desvinculada da poética e da criação, e o do livro de poesia é o louvor das várias vozes da cidade a habitar seus habitantes. No caso da produção mais recente, o seu ponto de partida e de chegada é este: a busca de um ensaísmo poético capaz de “tocar a alma ou tocar em nervos”.
Para Pucheu, a crítica praticada no Brasil fica distante disso, mesmo nos seus melhores exemplos, como Antonio Candido, do qual retira a imagem da “crítica cinzenta” que aborda o texto “verdejante e áureo”. Pucheu quer expandir o “colorido” também para crítica; quer liberá-la de seus “escrúpulos cinzentos” e da “gentlemania excessiva”, que “fixa a faixa de segregação entre literatura e crítica, entre poesia e teoria, entre arte e filosofia”.
No mesmo esquema, critica Leyla Perrone-Moisés, que pede “sobriedade” à crítica face aos “acertos” do texto poético, e Silviano Santiago, que fala de um crítico “que sempre vem a reboque” do autor. Para Pucheu, tais “complexo do rebocado” e “síndrome cinzenta” colocam a crítica “numa espécie de segunda divisão no campo da literatura”. Ao “crítico-rebocado”, contrapõe ele o “crítico-artista”, que “rivaliza” com a literatura e
“antecipa” seus movimentos. De resto, exegese e interpretação são irrelevantes face aos momentos radicais de criação, onde apenas a interjeição é possível — o que pode explicar também por que a crítica que ajuíza a obra não lhe interessa, mas apenas a que decorre da “ s i m p a t i a ” .
A leitura criadora, “nascida do espanto”, perpetua a exclamação face à poesia que se ama, e “desguarnece as fronteiras” entre teoria e criação, em favor de um pensamento poético. O pressuposto desse hibridismo é sempre a literatura como “serva das intensidades da vida” apta a potencializar nosso “corpo rotineiro”.
Curiosamente, entretanto, ao lado dos hibridismos louvados por Pucheu, vai se depositando, como resíduo, uma série inteira de oposições éticas singelas. Por exemplo, “implicações” contra “explicações”; “instabilidades” contra “estabilidades”; “intensivo”
contra “extensivo” —, onde um termo é vitalmente admirável e o outro, logicamente detestável. Todos os autores referidos por Pucheu são jogados por ele nesse mesmo jogo. Emily Dickinson ou Clarice, por exemplo, são outros apelidos do louvor do filosófico poético e da “Vida” como “parâmetro único do poético”.
Tal vitalismo mágico, suponho, deve ser diferenciado da mitificação do artista condenada por ele nos velhos críticos — apenas não vejo como. Tampouco deixo de pensar que o vocabulário pomposo que usa à vontade tem qualquer coisa de tradução parnasiana de poéticas pós-estruturalistas. Machado de Assis, por exemplo, se torna expressão de uma “protolinguagem logogênica”, que deixa as “intervenções provocadoras de esbarros geradores do novo”. Antecipando Benjamin e Agamben, Machado já revela a destruição da experiência quotidiana na cidade e a “busca de uma potência vitalista”; antecipa até o próprio Pucheu na idéia de “desguarnecimento da fronteira entre literatura e filosofia” e de “linguagem saudavelmente delirante”, em favor da “estranheza do inexperenciável” da “fantasia” contra a “memória”.
Também o “Íon”, de Platão, é lido como “fragmentos que acatam diferenças”/ “pluralidade de vozes”/ “pensamentos que se entrechocam”. O “diálogo”, longe de ser um método para certo tipo de demonstração filosófica é um “fecundo pensamento plurívoco” — que vale por isso mesmo: pela pluricidade oposta aos “monólogos em busca de unificação”. Sem desconsiderar o charme que possa ter uma “Atenas da mestiçagem entre poesia e filosofia”, esse programa de confusão conceitual cedo ou tarde acaba se ressentindo de inconsistência. Qual o "prazer" de torcer filosofia e poesia em torcida? Semelhanças com o “jeitinho do carioca” Tal “vivificação pela potência da poesia”, Pucheu entende tratar-se de uma atividade filosófico-poética com semelhanças com o “jeitinho do carioca”, com o “jeitinho do Rio”: “admirar, exclamar, espantar-se, sempre...”. Talvez seja essa minha falta de base em ser carioca que me torna surdo a tanto anúncio do êxtase, mas, enfim, me pergunto, de que adianta ser “pluralista”, como qualificava Foucault, se é para embarcar numa cosmogonia (moralista), em que há os que estão do lado de Nietzsche e Deleuze (e agora, pelo visto, de Agamben) e os que não estão?
A impressão que me fica dos livros de Pucheu é que a idéia dos devires a serviço de tudo o que não é e não-sabe-o-que-será-um-dia para desembocar no elogio da vida é apenas mais uma tentativa de reconciliar o inconciliável: filosofia, poesia ou crítica com papo-cabeça.

ALCIR PÉCORA é professor de
teoria literária na Unicamp e autor,
entre outros, de “Teatro do
Sacramento”, “Máquina de gêneros”
e “As Excelências do Governador”

 

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