Palavras sem sentido
De linhagens distintas, três novas obras reiteram a inquietação quanto à legitimidade da poesia na atualidade

MARCOS SISCAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Apesar de distintas visões sobre a natureza de seu ofício, três novos livros de poesia reiteram uma mesma inquietação quanto à legitimidade da prática poética: para que poesia?
A pergunta, em aparência contraditória, é um dos eixos do discurso poético moderno e se tornou mais aguda depois do "fim das vanguardas", adormecido o etos transformador que a atenuou ao longo de quase todo o século 20.
O desconforto aparece na justificativa editorial da poesia reunida (incluindo vários inéditos) de Alberto Pucheu, no destaque dado à existência de um "projeto", reforçado pela presença de entrevistas do autor, como se a poesia devesse ininterruptamente explicar a que veio.
A obra permite acompanhar as transformações -não apenas o programa- de uma escrita que busca a "fronteira desguarnecida" entre poesia e filosofia, passando das elipses metonímicas a uma expansão reflexiva.
A profusão textual ("falatório"), organizada pelo princípio da montagem ("arranjo"), é seu modo de acolher o "silêncio", no "espanto" do acontecimento.
Abandonando a trava poundiana da síntese carregada de significados, o poeta encontra no parentesco com o pensamento um modo de merecer a vida ("Passo a vida imerecidamente"), mas também de atribuir sentido à manifestação poética.
É significativo que essa transformação tenha início na comoção pelos livros esquecidos nas bibliotecas, o que legitima o poético como espaço de transgressão ("O mais novo interdito: não há lugar para o livro./ Transgressão em exercício: o livro como lugar").
O novo livro de Paulo Henriques Britto dá continuidade a uma voz poética mais conhecida dos leitores de poesia. Seu gesto demolidor contraria o de Pucheu, dirigindo-se contra o pensamento abstrato e contra a experiência sentimental.
Em Pucheu, a vida "espreita a cada esquina"; em Britto, ela se limita ao mínimo suspiro.
Há certa violência crítica em Britto contra a profundidade do assunto, a favor da superfície, ou seja, da comunicação que se aproxima do simples contato ("e se a linguagem for apenas fática?").
Nota-se a proximidade dessa poética não apenas com a lucidez mas também com a obsessão da forma típica de João Cabral, acolhedora e claustrofóbica. Seu espaço é estreito, sem saída ("beco"), como a medida fixa, tendo em vista a tênue razão de não ser "pior do que outro qualquer".

Dissimetria
Apesar disso, um breve suspiro de vida se manifesta: pragmático, ácido, sem concessões. É o lado talvez drummondiano da poesia de Britto que, à bem cabralina "inapetência para os sentimentos", acrescenta o patos da recusa da "piedade".
É nesses momentos de dissimetria, entre a aridez de superfície e o envolvimento subjetivo com algo que tem que "seguir em frente", que a poesia de Britto respira mais livre, para além da reconhecida coerência de sua poética.
Com "Andaimes", Milton Torres, que é também historiador e diplomata, prossegue um projeto recente (outro livro de poemas saiu pela Ateliê, em 2005), mas de fôlego amplo, que o prefaciador define como busca dos "fundamentos intelectuais da cultura eurocêntrica". O leitor não deve deixar-se enganar pela modéstia do título: Torres se apresenta como um cosmopolita erudito, com manuseio maduro da tradição poética.
Pelo domínio de referências culturais heterogêneas, de modo fragmentário e citacional, seus poemas evocam uma espécie de "pós-modernismo crítico" no qual, entretanto, a questão cultural dificilmente ganha corpo, em sua abrangência, uma vez que tende a diluir-se na exuberante profusão de línguas (basicamente português e inglês, com incursões freqüentes pelo espanhol, francês e italiano), de citações, de exercícios de estilo.
Embora organizado tematicamente, o ecletismo do livro é algo desconcertante.
Se, para Britto, o real é um "excremento de palavras" e a razão de escrever oscila entre o desencanto individual e uma exigente visão da vida literária, para Torres é a poesia que está na "lixeira" do real, pois, à falta de "mercado", vive de "propina".
A conclusão, neste caso, sugere que o poeta supostamente corrompido está ausente do poema realizado: o impasse se resolve pela presunção de inocência -ingênua ou cínica- que apenas reforça os motivos da suspeita.
A despeito disso, o cuidado em oferecer uma justificação pública ou pessoal para a prática poética encontra sintonia com os "faits divers" da poesia. O modo inquieto, sistemático e contraditório com que essa justificação tem sido feita mostra que alguma coisa respira na poesia contemporânea, ainda que renovando as razões de sua perplexidade.
MARCOS SISCAR é professor de literatura na Universidade Estadual Paulista.

 

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