POEMAS EM PROSA DE UM ICONOCLASTA

( Caderno Idéias , do Jornal do Brasil, de 4 de Março de 2000)

Há algo de novo sob o sol de Pasárgada: uma voz independente e única , solitariamente maturada ao longo de, no mínimo , seis anos de criação lírica . Essa voz tem dono : pertence ao jovem filósofo e poeta carioca Alberto Pucheu.

Aos 33 anos , quatro livros publicados, Pucheu é, por excelência , um poeta em progresso . Sua obra é cada vez mais trabalhada, num processo de construção permanente e novo . A evolução é nítida : basta comparar o livro de estréia , Na cidade aberta , com este Ecometria do silêncio . Se o primeiro já revelava um poeta em potencial , de acordo com a certeira observação de Ítalo Moriconi no prefácio do volume , neste quarto trabalho constatamos que o autor tornou-se senhor do seu ofício , com pleno domínio da técnica e da linguagem poética .

Entre a obra exordial e esta última , Pucheu publicou dois livros : Escritos da freqüentação (1995) e A fronteira desguarnecida (1997). Até então , já dera um importante salto : saíra de uma boa estréia - ainda que sem dicção própria - para um segundo trabalho mais sólido e autoral. No livro seguinte , de título eliotiano, o poeta adotara um gênero ousado : o poema em prosa , arriscada experiência-limite entre o poético e o prosaico .

Em Ecometria do silêncio , o autor retoma o gênero " com intimidade raras vezes conseguida". Nunca sua poesia foi tão prosaica – enquanto forma – e, não obstante , tão poética – enquanto provocadora de emoções e reflexões . De fato , Pucheu desnuda sua alma e, por supuesto, a alma alheia , a cada página do livro . O poema em prosa , antes dissertativo , agora busca a narração . É a vida , intrometendo-se na escrita para salvá-la do beletrismo. Nessa linha narrativa , os melhores exemplos são " Pequeno conto americano com sotaque brasileiro " e "Nascido na segunda metade dos anos 60".

No decisivo texto de abertura, homônimo da obra, já se percebe a inventividade do autor. Título enigmático para um livro tão simples e direto, Ecometria do silêncio pode significar "medida do eco do silêncio", "medida da morada do silêncio" ou "travessia da linguagem", de acordo com a erudita e correta análise de outro poeta-filósofo – Antonio Cicero –, no posfácio do volume. Um tanto irônico e iconoclasta, Pucheu renega a tradição poética oficial, numa corajosa profissão de fé às avessas: "Não fui ao túmulo do poeta morto, cravar a testa no cimento duro. (...) Não caminhei pela rua do poeta morto, recitando seus versos de cor, trazendo escombros junto a mim. (...) Nunca quis sua caneta em meu bolso, transpirando seu suor em minhas páginas escassas. (...) O que um dia esperei dele, descubro que, de há muito, trago no corpo: a força de um silêncio recolhido". Com efeito, entre o poeta morto (símbolo da literatura acadêmica) e o rinoceronte (símbolo da estranheza, da resistência e da solidão, a qual, não por acaso, é uma das palavras-chave desta obra), o autor prefere o segundo. Aqui, uma hipótese: presente desde o livro anterior, o mamífero ungulado reflete a posição única de Pucheu – ainda que não extremada –, no curso da poesia brasileira contemporânea: "Apesar de solitária, aberta a múltiplas freqüentações; apesar de aberta a múltiplas freqüentações, solitária – a voz que me atravessa". Tal símile é assumido pelo próprio poeta, quando este, insatisfeito por estar apenas admirando a "maravilhosa estranheza" do animal, resolve transmudar-se nele: "(...) um guindaste se apropria de meu sexo, (...) o chifre crescendo pelo nariz. Quando o queixo começa a se empinar, guincho o que nunca escutei: a voz anginosa do rinoceronte" ("Poema ungulado, nº 2"). O toque surrealista revela, na verdade, um inaugural processo alquímico de linguagem: o poeta deseja uma coisa, retrata-a em sua escrita e, no afã de compreendê-la, metamorfoseia-se nela, literariamente. Mas há, ainda, outras obsessões: a paixão sempre renovada pela cidade (que desta vez atende pelo nome de Sebastianópolis, numa alusão às origens do Rio) e pelo trabalho de linguagem; o apreço por detalhes curiosos de fatos e personagens históricos que permaneceram " à margem do resultado de todas as coisas"; o uso do poema-pílula, empregado de forma pessoalíssima – no caso, insights poéticos breves, muitas vezes de caráter filosófico –, além dos diversos níveis de registro da fala (vide "Três poemas inesperados"), tudo isso sem abandonar a lírica de reflexão, característica básica do autor deste livro que, sem dúvida nenhuma, foi um dos grandes lançamentos poéticos do ano passado.

Penso em Pucheu e nos principais nomes da poesia brasileira que se firmaram nos anos 90: Adriano Espínola, Nelson Ascher, Carlito Azevedo, Alexei Bueno e Claudia Roquette-Pinto. O autor deste Ecometria do silêncio foi o único que efetivamente manteve e continua mantendo uma postura à parte, com relação à lírica contemporânea. Não pagou tributo a João Cabral ou aos concretos. Não aderiu tardiamente à poesia marginal, e muito menos ao neoparnasianismo ou ao neo-simbolismo, estilos dominantes neste Brasil de fim de século (Manoel de Barros, outro independente, é seu paralelo mais próximo).

Há algo de novo sob o sol de Pasárgada: quem viver , lerá.

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