ECOMETRIA DO SILÊNCIO

(na revista Idioma , ano XX, número 21, do Instituto de Letras da UERJ)

Uma resenha não é nunca , nem poderia ser de outro modo , mesmo que seu autor o quisesse, um juízo imparcial . Escrever é sempre tomar uma posição . É o que faço aqui .

Mas um poeta também precisa fazê-lo, precisa saber o que fazer com as palavras , e dar expressão a isto : a linguagem não é mero instrumento de comunicação . Isto é: fazer poesia é também contornar insistentemente algo que nos marca como humanos – a falta . Mas não basta mover mundos e fundos , revirar o estratificado, bater-se pungentemente contra as idéias estabelecidas. É preciso , no meu modo de ver , atravessar também o Belo , ou melhor , certa idéia ou certas idéias do que seja o Belo , ir também além dele. Isto é: poesia não é beletrismo, não é engenharia de palavras , não é chá de senhoras . E ninguém é dono da poesia . E isto porque há muitas maneiras de ser sozinho .

Alberto Pucheu abre Ecometria do silêncio com : “ Ser poeta não é ambição minha ./ É a minha maneira de estar sozinho .” A epígrafe ficou-me nos ouvidos , martelando. No final , a pergunta : como um poeta tão urbano , tão perdido nas trilhas da cidade , escolhe versos de Caeiro, o pastor amoroso de Pessoa , para gravá-los justamente na portada de seu livro em epígrafe ? E eu já quero responder de uma vez : porque Pucheu reinventa uma paisagem , que lhe entra pelo corpo , paisagem que não é pra ser admirada nem explicada. A realidade pra ele é só e unicamente realidade psíquica . E é assim que é mesmo pra todos nós . Só que Pucheu faz disso poesia , sonhando, por exemplo , com a adequação do rinoceronte , “o corpo ... na medida exata do corpo ”. E contrapõe: “E o meu [ corpo ] tão distante , perdido pela multidão , pelos cantos das palavras alojadas, angaria faltas e excessos por onde anda (...)” (“ Poema ungulado , 2”). Por onde anda , o mundo intromete-se no corpo : “ um gavião voa pelo intestino que se alarga/ à sua passagem , uma cabra rumina meu coração / vibrante como capim ao vento , nuvens / se apropriam de meu cérebro , vagam/ em minha cabeça , intrometem-se pelo tórax ,/ pela pélvis, pelos pés , pelo ar (...)” (“A 1600 metros ”).

Não sei exatamente o que quer dizer uma epígrafe . À primeira leitura , no entanto , mais coerente talvez fosse meter um Álvaro de Campos na abertura . Mas não é. O livro fica mais lindo assim como está. E é assim que gosto dele. Pucheu abre um espaço todo seu , sem imitar ninguém , trafegando nisto que foi para Pessoa uma maldição vivida na carne : a dor de existir .

Sol que desnorteia minha vida , braçada de cereais erguida no espaço como fios de ouro sustentados pelo vento , iluminai estas pálpebras pesadas de nuvens , fazei-me aceitar a maldição de pensar o que ninguém pensa , de sentir o que não se sente, deixai a vela do ócio conduzir este barco para o mistério que estala em cada peito extraviado! (“ Último poema de Tonio Kröger)

Em “ Pequeno conto americano com sotaque brasileiro ”, Pucheu inverte mais uma vez as perspectivas banais e segue nas profundezas, misturando lugares , parando o tempo , vivendo por si mesmo e pelos outros . Onde talvez houvesse o estranho , acerca-se do mesmo . O mesmo , não o banal . Onde talvez houvesse a bestialidade, Pucheu contorna aquilo que sem dúvida está no seu livro como um vetor . Refiro-me ao que repetidas vezes aparece nos seus versos como “ intimidade ”.

Lembro-me também de um haxixe fumado num hotel
em Barcelona (numa espelunca barata de Barcelona),
antes da caminhada ladeira acima aos quadros de Miró. Estava com minha mulher , aquela mesma garota de preto de anos atrás , escorada na porta à minha espera , na leitura de John Cage em St. Mac's Church; depois da fala simples do poeta passamos a noite no apartamento dela, num sótão em frente ao Central Park. Por vizinhos , um casal de irmãos dinamarqueses trepando na madrugada silenciosa e fria . Tudo vivido com intimidade raras vezes conseguida.

É preciso não entender para aprender , diz-nos. Afinal – é impossível não lembrar –, “ pensar é estar doente dos olhos ” (Caeiro). É preciso esquecer-se de si pela cidade para conseguir intimidade com o silêncio . Silêncio para Pucheu só existe enquanto visada: é o corpo da mulher amada , a concha de um molusco , mas é também “o exílio inexistente da caverna ” (“A 1600 metros ”), “ um homem lendo, numa cabana do ermo bosque de bambu ” (“O mundo , a nanquim ”), que , entretanto , não pode ser encontrado entre os traços que vão se apagando no nanquim de 1448, estampado na página 22. Intimidade é também esquecimento : “ Não tenho por lugar / turísticos belvederes , mas o emaranhado das ruas populosas/ e recantos por onde encontro o esquecimento ” (“Codicilo”). Em direção ao esquecimento , circunscrever o humano nos limites do inumano :

(...) Continuarei a caminhar

por quantas horas forem necessárias

até expirar o derradeiro resquício de incômodo , até secar a última

gota do medo ,

até que o grito não venha do desajuste , mas

do inumano explícito em cada paisagem .

Pucheu, cantor de uma paisagem que não pode dar sentido à vida , pastor sem cajado na desordem do corpo e da cidade .

No silêncio , no esquecimento , na paisagem que é só sua , nas palavras soletradas em versos que se misturam em prosa , inadaptados à própria expressão poética , nos pedaços de memória , na experiência cotidiana , Pucheu escreve um livro sobre o corpo . Sobre a solidão do corpo querendo esquecer-se de si mesmo e do que tem de humano , e do que faz de si mesmo corpo e não um organismo regido por leis inabaláveis . Pucheu dá expressão poética a este anseio humano de ser nada , manchando-o com um sol negro . E nomeando-o, uma vez que só existe mesmo enquanto anseio . Um pequeno fio o separa, o faz recuar talvez , ou melhor ainda : lhe permite certa indiferença para atravessar o jogo de tudo ou nada em que Campos joga seu corpo e suas fichas .

Entre Campos e Caeiro, Pucheu ergue seu pequeno mundo , seu mundo singular , desde A fronteira desguarnecida (Sette Letras , 1997). Este novo livro , no entanto , é mais afirmativo . Lembro: “Escrevo o poema de uma nova geração (...)” (“Nascido na segunda metade dos anos 60”). Isto também se pode esperar de um poeta : que ele , à frente de qualquer outra pessoa , aposte no que ali vai como letra impressa . Defender o que do ponto de vista subjetivo vale ser defendido é o que , de resto , faço eu também aqui , como leitor atento que sempre fui de sua poesia .

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