ESCRITOS DA FREQUENTAÇÃO

(revista " Poesia Sempre ", ano 3, número 6, Outubro 1995, páginas 350-352)

Se é verdade que grandes poetas reafirmam sua força pela retomada e desenvolvimento de certas metáforas ou símbolos , que lhes marcaram desde cedo o estilo e prosseguiram pela existência afora — Borges, com seus tigres e espadas , Drummond com sua mítica Minas , Cabral com suas facas e canaviais , por exemplo —, dando a impressão de que , no fundo , escrevem e reescrevem o mesmo poema , mais surpreendente este fato se torna ao observarmos num jovem poeta a retomada obstinada de certos temas , no início mesmo de sua carreira literária . Tal é o caso , entre nós , de Alberto Pucheu.

Neste novo livro , Escritos da freqüentação , Pucheu, dando provas de amadurecimento poético, reescreve versos , estrofes e poemas de seu trabalho inicial Na cidade aberta ( Rio de Janeiro , UERJ, 1993). Se o poeta se abria tematicamente em busca da própria poesia ("caem as palavras / se não bastassem as folhas / e os pingos da chuva "), do mar e seus significados ("o pescador sabe/ de cor / o alfabeto das areias "), dos mitos , ciência e aventura , neste segundo retomará temas que marcaram já o primeiro trabalho : os temas da cidade e da linguagem ( poética ). E esta retomada , diga-se logo , não será fruto de uma possível falta de originalidade : ao contrário , resultará de uma reflexão artística que visará enriquecer , através do aprofundamento e variações, os símbolos que se apresentaram inicialmente .

Na cidade aberta , Pucheu escreve que "a sinalização indica,/ por detrás / da maresia :

CIDADE :/ lugar que acolhe/ asfalto e sol ,/ ondas e pontes / onde memória é a palavra ". Noutro poema , percebe que " nos acostumamos/ com os fragmentos / nas avenidas ". Pois bem . Em Escritos da freqüentação , o poeta retorna aos temas da cidade e da palavra para fundi-los, ampliando as bases de um símbolo anterior : a cidade-língua, cujas fundações se dão ao nível do alfabeto (" começo os alicerces da/ cidade / com apenas seis letras "), para em seguida transformar-se em cidade-escrita, cujas " linhas /mapeiam espaços / delineiam ruas e deixam baldios " e por fim tornar-se em cidade-linguagem, em cujo centro se encontra o homem , ou seja, o poeta capaz de " converter a convenção / em invenção ", projetando-se no espaço da página e do tempo .

Como estratégia estilística , Pucheu também retoma os " fragmentos / nas avenidas " do primeiro livro , assinalados acima , para lançar agora nas páginas lascas , estilhaços , fragmentos de frases e poemas , como a compor isomorficamente o próprio cenário da matéria poética e urbana misturadas , pois '' qualquer escrita é permanecer / em movimento " e a cidade é esta " massa pluriforme: elasticidades/ encolhimentos / seguindo arranjos ".

Não obstante o aparente caos desta escrita fundadora, a estrutura de Escritos da freqüentação entremostra um projeto muito bem pensado, cuja execução não se revela menos rigorosa . Isto nos faz lembrar Heidegger para quem a poesia é um projeto poético pensante . E juntando o filósofo alemão ao estilo fragmentado deste Escritos , não podemos deixar de nos referir a Heráclito (reinterpretado que foi modernamente pelo autor de Ser e tempo ), como sendo talvez o modelo poético-filosófico que tenha inspirado Alberto Pucheu. Com uma diferença básica : enquanto o filósofo grego voltou-se sobretudo para uma reflexão sobre a natureza ( dentre outras imagens , a do rio em cujas águas ninguém se banha duas vezes ), para Pucheu poder-se-ia dizer que se debruça... sobre a cidade . O rio heraclitiano se transforma, por exemplo , no mar do tráfego urbano (" Qualquer esquina é ilusão de um fim / qualquer fim alusão a um começo / pelos mares da cidade / começo e fim suhmersos"). Se Heráclito, noutro passo , afirma, no fragmento 8, que "o contrário é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia , e tudo segundo a discórdia ", podemos aproximá-lo ao fragmento 38 de Pucheu, ao assegurar que a " cidade : (é o) lugar onde os contrários cedem". Se, para o filósofo de Éfeso, a " natureza ama esconder-se", para o poeta , na cidade , "as letras são a senha , a palavra / o enigma "...

Evidentemente não cabe comparar aqui , em termos de alcance filosófico, os fragmentos do poeta carioca e os do pensador grego . Desejamos apenas estabelecer uma aproximação estilística e ( contra ) temática . Mais ainda : assinalar a vertente filosófica do nosso poeta , perceptível através da estrutura sentenciosa de sua escrita e o conteúdo de verdade que alguns fragmentos alcançam. Alguns exemplos : "A perfeigão de um livro não conhece evolução "; "o pensamento quando expulsa as palavras é seqüestrado por elas "; " Como viver sem o solavanco do espanto ?"; "E disse-me, pouco antes de morrer : com poetas , menosprezá-los mediante o pensamento , com pensadores , menosprezá-los mediante a poesia ". Perfeito .

Não por acaso Alberto Pucheu lembra que " Dois mil e quinhentos anos me aproximam deste instante ". Entenda-se: do instante heraclitiano. Do instante que põe tudo em movimento hic et nunc. Estamos, portanto , diante de um poeta-filósofo ou de um filósofo-poeta ( aqui a ordem dos fatores não altera o resultado ), cuja originalidade formal e nível de reflexão o colocam bem acima da média da produção poética brasileira atual , de sua geração . AIberto Pucheu, com seu novo trabalho , já não é mais uma potência , uma promessa real , como assinalou Moriconi Jr., ao prefaciar seu primeiro livro . Neste segundo , posso assegurar que ele já se afirma aristotelicamente como ato , em plena realização poética .

Por último , gostaria de ressaltar a pertinência histórica de Escritos da freqüentação . Se, para além do conteúdo imanente dos fragmentos e poemas , manifestado lingüisticamente, é possível detectar uma intenção do que foi poetizado, intenção esta que cresce ao alcançar um sentido histórico , podemos dizer que o Escritos de Alberto Pucheu adquire seu verdadeiro sentido ao confrontarmos o projeto poético "à realidade concreta na qual nós nos acreditamos domiciliados" (Heidegger). E esta realidade concreta é a cidade do Rio de Janeiro , hoje , marcada por extremos de violência , rupturas , fricções sociais de toda ordem ; uma cidade partida , como o jornalista Zuenir Ventura recentemente a definiu: uma cidade antagonicamente dividida entre os seus diversos níveis sociais .

Ora , para Alberto Pucheu a escrita poética e esta cidade sinonimizam: ambas perfazem o mesmo " lugar de tensão . De atenção ". Podemos pensar no cenário de tiroteios constantes , no cotidiano dos morros cariocas , ao lermos a advertência de que "o tiro de uma frase pode ferir muitas vidas " e que estamos vivendo "a era da rebelião das palavras ". Aqui , o contexto verbal rivaliza com o social : espelho duplo . Embora utilizando uma linguagem fragmentada, o Escritos do autor , ao criar sua cidade-linguagem, visa unir os diversos estratos da língua , buscando uma nova unidade de sentido entre os diferentes elementos da estrutura poética . Sugere com isso a possibilidade de as classes sociais encontrarem um idêntico espaço de convivência democrática na cidade . Assim , em seus versos se reúnem, a um só tempo , a utopia verbal e social : "Os escritos pertencem a todas/ as vozes Os escritos / pertencem a todas as coisas ".

Se a cidade do Rio de Janeiro encontra-se socialmente partida , urgindo reaproximar os seus vários segmentos para torná-la mais habitável e feliz , do mesmo modo se encontra a linguagem poética :— partida —, na qual traficantes da má poesia tentam impor suas normas , leis e embustes para o resto da sociedade . Reagindo a este estado de anomia poética , insurge-se Alberto Pucheu com seu Escritos da freqüentação , para fundar abertamente a cidadela da poesia .

 
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